Aos setenta anos, sim, o Poeta tem todo o direito de não querer
ser bustificado no Parque dos Poetas que um autarca de nome Isaltino, talvez
bem intencionado, deseja erguer nas terras de Oeiras, que antes foram do marquês
de Pombal de má memória. Aos setenta anos, sim, o Poeta tem todo
o direito de, estando ainda vivo, não querer enfileirar ao lado dos poetas
mortos, e ainda por cima erguido em estado de estátua pelas mãos
de um estatuário que dá pelo nome de Francisco Simões.
Aos setenta anos, sim, o Poeta pode dizer que não lhe apetece nada viver
num parque e talvez em muito desagradável companhia. E por isso pode
declarar, com a mais sincera raiva e na defesa do seu resguardo pessoal, sem
pompa nem circunstância, que "o poder de um poema diz respeito
ao mundo, e por isso se considera a poesia uma actividade perigosa. A política
é anódina porque o seu objecto não é o mundo, mas
uma ficção do mundo. Conseguimos então conceber um político
- seja qual for a escala -, um autarca, por exemplo, erguendo-se sobre o funcionamento
dos esgotos da autarquia ao mesmo tempo que joga com as imagens do mundo: poemas,
os autores, a territorialidade - e, para homenagear a sua pessoal ilusão
de poder, dispor renques de imagens de autores subentendendo (supomos - e supomos
que mal) os próprios poemas".
Aos setenta anos, sim, o Poeta tem todo o direito à
indignação e à recusa de enfileirar nesse cortejo de engrandecer
a pátria no alto desígnio que um dia dominou o autarca Isaltino,
certamente com boas intenções. Mas o Poeta não está
sozinho nesse protesto e a seu lado outro grande Poeta como é Mário
Cesariny já reagiu e declarou de forma indignada (e com toda a razão)
que iria a Oeiras com um bulldozer para destruir a estátua e pelo caminho
arrasar mais algumas.
Mas, sobretudo, aos setenta anos, o Poeta tem todo o direito
de fazer a súmula poética de uma vida, olhar para trás,
reler a Poesia Toda escrita em mais de quarenta anos de vigilante, resguardada
e discreta contenção, e fixar, mesmo que não seja em definitivo,
o balanço final das pedras que espalhou no caminho ou esses "pontos
luminosos" que, na orientação poundiana, constituem um poema
contínuo que não deixa de escrever ou de reescrever mesmo
quando, como Herberto Helder afirma na nota desta edição, deseja,
"em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas impreteríveis
para que da pauta se erga a música, uma decerto não muito hínica,
não muito larga nem límpida música, mas este som de quem
sopra os instrumentos na escuridão, música às vezes de
louvor à própria insuficiência, sabendo-se inteira, ininterrupta,
com os seus pequenos recursos e quantidades e segundo as inspirações
pessoais do idioma".
E todo o livro se lê uma vez mais como um só
poema por essa linha de água em que escorre a essencialidade de um "discurso"
poético que é, no seu pleno contínuo, a expressão
maior de uma prosseguida e insistente "iluminação" ou tão-só
a "arte de emudecer" pela música surda e nocturna que transpira em cada
poema desta última "colheita" pessoal. E sempre o rigor da
palavra, a força da imagem, a emotividade discursiva do poema nos consente
entender por outros caminhos a mesma repetida e coerente "cosmogonia" poética
que singulariza toda a obra herbertiana. Não como a "história"
de um poeta que assim se confessa ou nos fala das profundas matrizes por onde
os ventos antigos, as águas e os lugares da sua própria navegação
escorrem, mas no entendimento de se saber das constelações que
povoam um "cosmos" tão carregado de estrelas aldebarãs. E assim
a palavra poética ganha uma dimensão renovada na mágica
presença da palavra em si mesm, reabilitada ou intencional, capaz de
proclamar todos os exageros do mundo pela consciência do paraíso
perdido por onde todos os poema afinal se iniciam e como agitador universal
que destrói ou recusa todas as decisões que o integrem ou aproximem
dos outros, sempre o Poeta refaz esse mundo pelos céus estelares de outras
cabalas, cujos contornos se decifram no desejo firme de mudança, diferença
ou mutação de formas e valores, aceitando as regras ou fronteiras
em que a vida se manifesta hostil e próspera para urdir outra teia por
onde passam as palavras sempre iluminadas.
Por isso, a poesia herbertiana, no seu todo e nesta
anunciada "arte de emudecer" (ou na sua pessoalíssima "arte de roseira")
por ter dito tudo e não querer repetir os passos pelos lugares orbitados
de outros mundos, percorre e constrói o seu próprio espaço,
cria essa propositada alquimia do sonho e do acto em que se confunde a inevitabilidade
da morte com o sonho sempre desconfiado do trajecto em viagem feita sem regresso.
Mas, ainda e sempre na visão iluminada da palavra, na forma própria
de o poema contínuo se escrever em todos os instantes em que o
Poeta se sente redivivo, o que sobra (se acaso é de um sobrar
que se trata) da poesia de Herberto Helder, no pessoal critério de emendar
a mão ou na sua "arte de roseira" saber eliminar o que lhe
parece estar a mais na expressão poética que se confirma nas escolhas
ou recusas que ao longo dos anos tem feito, são todos os seus poemas
que andam espalhados pelo caminho, mesmo que refaça esse trajecto ou
deixe de lado poemas e livros que antes foram do seu agrado e hoje não
passam de pedras atiradas aos leitores que se aproximem da sua poética
e dela queiram recuperar intactos os passos dados em volta e no correr dos anos.
Trata-se, pois, de um processo contínuo de criação poética,
poema a poema, escrito ou recusado, mas sempre na perspectiva consciente e bem
assumida de que criar é renovar e emendar, e o poema contínuo
se ergue ou distende pelos fios de palavras entrelaçadas como forma
e esforço de "estar vivo" ou "redivivo", como se
declara no único poema inédito desta última edição
de Herberto Helder. Mesmo no "sacrifício" de muitos outros poemas e nos
que hão-de chegar em títulos individuais ou integrados nas sucessivas
"rupturas" discursivas em cada nova edição da sua Poesia:
Redivivo. E foi por essa mínima palavra que
apareceu não
se sabe o quê que arrancou
à folha e à esferográfica canhota a poderosa
superfície
de Deus, e assim é
que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido
um momento antes, apenas.
Serafim Ferreira
Herberto Helder
OU O POEMA CONTÍNUO
Ed. Assírio & Alvim / Lisboa, 2001.
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