Desde há muito que Fernando António Almeida nos habituou
como seus leitores das crónicas de viagem pelo País, em percursos
que nem sempre são os mais conhecidos, primeiro nas páginas do
"Expresso" e agora aos sábados nas do jornal "Público".
É por esses caminhos e itinerários que, sem propósitos
ou olhos de turista, nos tem dado a conhecer lugares, hábitos e costumes
das gentes portuguesas nos pontos mais esquecidos ou em que, como jornalista
atento aos fenómenos culturais, evidencia uma outra atenção
crítica na redescoberta de paragens que se fica com viva curiosidade
de melhor as conhecermos.
Mas Fernando António Almeida é também
um ficcionista ou um excelente contador de histórias que, pela sua directa
experiência ou pelos caminhos de um certo exílio forçado
nos tempos do fascismo, o fez então deambular ao acaso das situações
vividas por França, Itália, Bélgica e ainda durante alguns
anos em Argel, essa terra de moiros e memórias de outros combates para
os portugueses (e foram muitos) que ali se exilaram nos anos anteriores a Abril
de 1974. E nesses tempos de exílio, claro, a escrita era ainda uma forma
de suavizar a distância ou as saudades da pátria, na solidão
de outras lutas ou mesmo no desencanto sentido pelas contradições
sempre conhecidas. E disso Fernando António Almeida nos soube já
falar em livros como "Memória de Portugal", "Esmirna,
Cidade Azul" ou mesmo em "Marina Noiva da Vida", onde sempre
emergem emoções e sentimentos das histórias contadas e
fixadas nos limites narrativos de uma rica experiência pessoal.
Mas nestes Contos Cruzados o que ressalta com evidência
é um sentido marcadamente irónico e bem contundente de nos falar
ainda das nossas gentes, nos altos e baixos das suas fraquezas e misérias,
numa extensa galeria de personagens que, em apelo à imaginação
de quem as narra e de quem as lê, reinventa outros cenários de
um quotidiano vivido na aldeia ou mesmo na grande cidade. De facto, o sentido
destes Contos Cruzados (que por vezes recorrem à própria
História para redescobrir um outro sentido ficcional para o presente
vivido nas canseiras de todos os dias) espelha-se na brevidade narrativa e na
forma de rápido e incisivo "flash" que capta um instantâneo
na paragem do autocarro, à mesa do restaurante ou uma cena de rua. Mas
o que se prende mais ao sentido estrutural destes Contos Cruzados é
ainda sobretudo o propósito crítico e intencional de brincar com
as situações descritas ou fazer uma certa recorrência aos
valores mais profundos como os da moral, da educação ou da religião.
Por isso, deve enaltecer-se a forma de escrita destas "estórias"
que, na intenção claramente entendida na sua leitura objectiva
e imediata, remete os leitores pelo descaminho das coisas mais simples da vida
e faz entender que sempre podemos criticar os males e os defeitos dos outros,
mas na rebuscada forma de nomear as suas figuras (por vezes com nomes muito
bem achados), Fernando António Almeida desejou tão-só escrever
com muita verve e imaginação ficcional estes Contos Cruzados
que se lêem como histórias (e não simples anedotas)
vividas por entre um certo desenfado narrativo e um sorriso aos pés da
escada, na lembrança de Henry Miller, porque o que mais interessa nestes
contos é ainda a forma cruzada como todos eles se ligam ou interligam
nesse propósito literário de a ficção ser assim
quase mais verdadeira do que a realidade. Enfim, estamos em presença
de um livro de qualidade que reafirma uma vez mais as qualidades ficcionais
do autor de "Roteiros de Portugal" num livro que se lê com todo
o entusiasmo e prazer.
Serafim Ferreira
Fernando António Almeida
CONTOS CRUZADOS
Ed. Teorema / Lisboa, 2001.
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