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Estrelas que a televisão fabrica para o povo

Cheguei ao aeroporto de Lisboa e fui para a estação do Oriente, para apanhar um comboio para o Norte. Vinha, como sempre, carregada. Antes de procurar o meu lugar tratei de pôr a bagagem onde coubesse. Estava eu numa luta desigual com uma mala enorme quando comecei a ouvir uns assobios ruidosos e uma agitação geral na carruagem, cheia de militares. Olhei e vi que o motivo de toda aquela confusão era uma rapariga, com o cabelo entrançado, que sorria para todos eles com um ar simpático. Gabei-lhe a paciência. Não È exactamente agradável ser o alvo de toda aquela excitação. Mas ela sabia lidar com aquilo.

Chegou perto de mim, para pôr a sua própria bagagem no sítio onde eu estava e dirigiu-me um sorriso, como se me conhecesse (ou como se eu a conhecesse). Estávamos as duas a tratar do nosso assunto e um fulano vem em nossa direcção e dispara uma fotografia, com uma máquina que tinha tirado do seu bolso. Sem sequer olhar para mim, sempre com os olhos colados na rapariga, estende-me a máquina e grita: "Tira! Tira!" Certamente que, com ar estupidificado, perguntei-lhe: "Tira o quê?" Desta vez olhou para mim, quase a perder a paciência, e voltou a gritar: "Uma fotografia!" "A quê?", perguntei eu. Desesperado, o homem rosnou: "A ela comigo". Obviamente, eu não estava a perceber nada. E ainda precisei de mais algum tempo para perceber.

Olhei para a rapariga, que já fazia pose ao lado do homem. Ela tinha o mesmo sorriso com que tinha atravessado a carruagem. Parecia concordar em tirar uma fotografia com aquele estranho. Assim sendo, lá larguei a minha bagagem e tirei a fotografia. O homem, que nem sequer se deu ao trabalho de agradecer (nem a mim, por ter tirado a fotografia, nem a ela, por ter ficado nela), respirou de alívio e recuperou a máquina rapidamente, não fosse eu ficar com a preciosidade da fotografia, que a esta altura já deve ter mostrado a tudo quanto é gente que conhece. Continuei a fazer o que estava a fazer, assim como a rapariga.

Procurei o meu lugar e quando percorri a carruagem ouvi uma referência aos "Acorrentados", o programa da SIC que pretende fazer guerra ao "Big Brother" da TVI. De repente, a rapariga estava a dar autógrafos a tudo quanto era tropa. Tudo servia para o efeito, desde guardanapos aos próprios bilhetes do comboio. Finalmente percebi que ela era uma "estrela" e que a única pessoa naquela carruagem que parecia não perceber isso mesmo era eu.

Foram algumas horas de viagem. A rapariga suscitou a curiosidade de toda a gente. Uma outra passageira do comboio, que seria apenas um pouco mais velha do que ela, meteu conversa e passaram algum tempo juntas. Para todo o tipo de pessoas, para todo o tipo de abordagem, a rapariga que, pelos vistos, tinha estado num qualquer programa dos "Acorrentados" tinha o mesmo tipo de simpatia. Sabia lidar com a fama, que adquiriu por motivo nenhum, a não ser o de participado num programa onde não se exige nada para além de ter um corpinho agradável.

A passagem do anonimato para a fama ? nem que seja temporária ? é sempre uma grande alteração na vida de uma pessoa. Antes de ter participado num programa de televisão que a tornou conhecida de milhares de pessoas, aquela rapariga reagiria de maneira diferente se aqueles jovens militares lhe assobiassem da mesma maneira. Desta vez ela sabia que não o faziam para ela enquanto rapariga como tantas outras, mas antes para ela enquanto rapariga que tem mais qualquer coisa. Tem o estrelato que as estações privadas portuguesas decidiram dar a pessoas comuns.

Contei esta história a muita gente, como o exemplo do que é viver num mundo e aterrar noutro, com uma realidade que em poucas semanas de ausência parece ser já tão diferente. Senti-me quase excluÌda no meu próprio paÌs, por não partilhar do conhecimento que toda a aquela gente que viajava na mesma carruagem possuía, graças ao grande meio de aproximação que é a televisão. Apeteceu-me fazer perguntas. Deu-me vontade de questionar rapariga sobre a origem da sua fama. Queria, a todo o custo, sentir-me como os outros milhares de pessoas que de repente passaram a falar da vida de outras pessoas que até há pouco tempo viviam sossegadas no seu canto.

Passei o resto da viagem a questionar todos estes fenómenos meteóricos, que acontecem porque a televisão quer mostrar pessoas as pessoas. Pensei sobre as funções deste grande meio de comunicação, que já não se caracteriza por ser aquela coisa fantástica que nos mostra aquilo que não terÌamos possibilidade de ver de outra maneira. Agora, vá-se lá perceber por que razão, o sucesso está em mostrar pessoas como nos. A vida dos vizinhos entra-nos, agora, pela casa dentro. Os estudos de audiências não deixam dúvidas a ninguém. As pessoas querem mesmo ver gente normal. Só que, neste processo, confunde-se tudo. Vemos pessoas reais a encenar vidas que não são as suas mas que nos querem fazer acreditar que são. Os noticiários tratam-nas como figuras da política, da cultura ou do desporto.

A minha dúvida, agora, é a de saber até quando é que as pessoas vão estar dispostas a conhecer Zé-Marias e Verónicas. Porque isto não é o mesmo do que uma telenovela da Globo, que tem fórmulas de sucesso e que, por isso, tem audiências sempre garantidas. A outra interrogação que eu ponho é a de saber o que é que vai acontecer a seguir, quando a fórmula de espiar a vida fictÌcia de gente comum deixar de ganhar audiências. Vendo as coisas assim, a história da televisão é, ela propria, uma telenovela. Esperemos pelo proximo capÌtulo.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester / UK


  
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Edição:

N.º 101
Ano 10, Abril 2001

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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