Um metálogo é uma conversação sobre matérias
problemáticas: ela deve se constituir de modo que os atores discutam
através dela tanto o problema em questão, como a estrutura do
diálogo seja ela mesma pertinente ao tema. (Bateson)
- Mas afinal, letrar é ou não é mais
que saber ler?
- É e não é. Depende do ponto de vista
que se tem sobre o que é ler.
- Mas as coisas não podem ser e não ser.
Alguém tem que dar uma palavra final sobre esta questão.
- Se você prefere pensar assim, diga- me, então,
quem daria essa palavra final?
- Alguém com autoridade para isso, ora. Afinal,
para que existem os doutores? Não é para dizer o que é
e o que não é verdade?
- Você se referiu aos doutores, usando consciente ou
inconscientemente o plural. Se são muitos os doutores, você os
imagina dando o mesmo sentido às palavras? Se cada um viveu uma trajetória,
trazendo um inventário de conhecimentos, como podem pensar da mesma maneira?
Além disso há saberes diferentes dos saberes dos doutores.
- Mas se a verdade é uma só, não é
natural o consenso?
- Aí é que está. Essa é uma versão
da verdade, mais ou menos como uma luz que a todos ilumina. Muita gente pensa
como você. Outros, entre os quais me incluo, pensam a verdade como busca,
como possibilidade de aproximação, o que difere de um resultado
conclusivo. Nessa concepção, o dissenso é que move a busca
da verdade.
- Espera aí. Você vai negar todas as verdades,
agora? Não é verdade que a gente nasce, cresce, se reproduz e
morre? A morte não é o ponto final da vida? Pelo menos esse não
seria um ponto de consenso?
- Sim e não. Quem morre pode deixar semente, uma descendência
materialmente falando; pode também disseminar idéias que outros
retomarão, contestarão, darão conseqüência;
ou seja, de tudo fica um pouco. De todo modo, se a nossa cultura judaico-cristã
nos ensinou a separar opostos, os índios, a exemplo dos orientais, têm
uma visão mais conjuntiva, inclusive não separam morte e vida,
compreendendo que os mortos permanecem nos vivos.
- Tudo isso é muito interessante, mas que tal voltarmos
à nossa questão: letrar é mais ou menos que saber ler?
- Estou justamente querendo sair desse modo de ver que separa,
hierarquiza, padroniza. Atribuímos diferentes sentidos às palavras,
não é?
- Isso eu aprendi bem. Há sentido próprio, o
que a palavra efetivamente denota, há sentido figurado, o que a palavra
pode conotar.
- Isso em estado de dicionário, onde as palavras dormem,
à espera de quem as desperte na correnteza comunicativa. Pois bem o sentido
das palavras é algo que lhes é atribuído pelos sujeitos,
concorda?
- Concordo, mas mesmo assim existe diferença entre
denotar e conotar. Isso não é uma questão de opção.
É ou não é e pronto.
- Você vê assim. Eu vejo de outra forma. Eu e você
não temos opção, vemos e compreendemos segundo o que nos
constitui. Eu incorporei o sentido amplo do ato de ler, cada indivíduo
lê um mundo, lê um contexto, lê diferentes textos. Nesse sentido
ressalta o ato de ler, acionando um movimento de auto-organização
em que o próprio sujeito vai sistematizando as informações,
interagindo curiosamente e desafiando-se a conhecer. Você e muitos outros
consideram que saber ler é apenas dominar o código escrito, que
nos permite representar graficamente o que falamos. A partir desse sentido restrito
de ler, pensam uma progressão linear.
- Mas não é isso mesmo? A aquisição
do código, o saber ler é o primeiro passo de uma série
de outros. Afinal não dá para avançar sem uma sistematização
gradual. Com isso você concorda não é?
- Acontece que a leitura de mundo vem antes da leitura
da palavra. O analfabeto que aprendeu a se virar no mundo da escrita,
encontrando quem escreva por ele, ou desenvolvendo astúcias para não
perder o ônibus, seria letrado ou analfabeto? Eu prefiro propor uma outra
pergunta: como o sujeito capaz de ler o mundo e os desafios que o viver lhe
coloca, encontra tanta dificuldade diante do código que lhe é
ensinado? Sua preocupação é diferente da minha. Como você
vê, nossas crenças nos colocam perguntas diferentes. Para ver é
preciso crer.
- Que história é essa? ? A questão
é ver para crer. Está até naquela passagem bíblica
de São Tomé. Falando sério, como negar o que é objetivo,
o que está claro para todo mundo?
- Pois é, todo mundo sempre pensou assim. A clareza
está no que é visto ou na luz com que o sujeito o ilumina? Os
estudiosos da visão, como Von Foerster estão descobrindo que é
o cérebro que comanda tudo até o que os olhos vêem e o que
deixam de ver. Você nunca se atrapalhou procurando algo que está
na sua frente e você não vê? Você nunca tentou fazer
uma criança ver o já explicado tantas vezes sem que ela consiga
dar a resposta que você espera?
- Agora complicou muito. Quer dizer que o cérebro
do alfabetizando não consegue ver o que eu lhe mostro, o que eu explico?
Nesse caso ele só aprende o ensinado quando já tiver compreendido?
Mas para compreender não é preciso que alguém lhe explique?
- Novamente caímos naquela armadilha do isto ou
aquilo. O que eu explico, o que ela apreende no mundo, o que outras pessoas
lhe informam, tudo isso vai fornecendo pistas para o alfabetizando elaborar
a compreensão. Eu diria que ela vai recriando o código.
- Mas, se eu não tenho poder de conduzir os passos
dos alfabetizandos, então o que me cabe fazer?
- Posso aproximar a escrita do seu mundo, do que é valor
para eles, do que os desafia, do que instiga sua curiosidade, do que desperta
o seu desejo, posso lhe dar pistas e abrir espaço para que possam perguntar
o que desejam saber. Posso ensinar muitas coisas sobre a vida e junto com tudo
isso também lhes ensinar amorosamente o código. Não um
código em si mesmo abstraído da vida. O bebê desde logo
se aplica a interagir com a mãe, comunicando-se antes de aprender a falar,
um infonauta caça uma informação de que necessita, e até
o homem da caverna, para caçar, lia atentamente as pistas deixadas pelos
animais. Pois é, todos esses atos têm a ver com algo que tem sentido
para a vida, sendo por isso insistentemente buscado. Aliás, eu não
estou inventando nada. Recentemente pesquisadores americanos de Palo Alto...
- Espera aí. Palo o quê? Lá vai você,
se distanciando cada vez mais da nossa questão.
- Palo Alto é aquela região dos EUA onde se pesquisa
insistentemente modelos cognitivos e inteligência artificial. Pois bem,
os pesquisadores chegaram à conclusão de que os caçadores
de eras remotas e os infonautas do século XXI (que aliás chegou
mais cedo) têm muito em comum. Na busca de comida ou na busca de informação
são utilizados procedimentos semelhantes que não prescindem de
intuição e um certo faro para encontrar o que faz sentido. Agora
me diga: se em tudo que fazemos há um sentido consciente ou não,
por que só a escrita dispensaria ter sentido?
- E é a mim que você pergunta? Eu é
que estou perguntando em meio a essa confusão de nomes. Já não
sei se devo alfabetizar, leiturizar, ou letrar. Para falar a verdade, estou
começando a me perguntar o que tudo isso muda na minha sala de aula?
- Essa já é uma outra questão. Deixamos
de lado a máquina de guerra discursiva para ver quem assume a
posição do legislador, quem pode dizer o que é e o que
não é melhor, absolutizando um modo de ver e entramos no cotidiano
da escola ? lugar de múltiplas vozes, espaço onde coexistem diferentes
lógicas, onde acontecem encontros e desencontros, determinações
e imprevistos...
- Estou adivinhando que você vai me dizer que não
há uma seqüência de passos que eu possa seguir para ajudar
meu aluno e eu vou ter que continuar no sufoco.
- Pensemos assim: talvez tenhamos que reaprender a exercitar
a insegurança com a ousadia dos infonautas, dos pescadores e das crianças.
Afinal que graça teria pescar se soubéssemos em que o momento
um peixe fisgaria o anzol? Não podemos penetrar o mistério das
letras pelos nossos alunos, mas podemos ler pistas que nos levem a compreender
o compreender deles para além do espaço escolar. Os saberes que
ele traz, seus desejos, suas curiosidades podem fornecer pistas do que lhes
interessa saber. E quando se quer saber algo, as possibilidades começam
a aparecer no horizonte. Nesse sentido, por que não alfabetizar
leiturizando e letrando ao mesmo tempo?
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