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Na Paz de Yumbulagang

Joaquim Castro, em Tsetang

O pequeno monge aponta para o céu cinzento através das vidraças sujas presas aos caixilhos, com pregos mas sem betume, e, com gestos elucidativos quis dizer-me: 'podes pernoitar aqui'.

Aqui, é o forte de Yumbulugang, aquele que vem retratado na capa do guia de viagem referente ao Tibete. Fortaleza encalavitada no apêndice de um monte rochoso que segue vale adentro sempre cumeado com bandeiras oratórias. Fortaleza um sem número de vezes construída, outras tantas destruída ao longo da história, mas ao que segundo consta é o edíficio mais antigo do Tibete.

Yumbulugang está ligado à origem do Tibete enquanto nação. Segundo lendas antigas, terá sido erguido para albergar o primeiro soberano tibetano, Nyentri Tsenpo. Também aí terão tombado do céu as primeiras escrituras sagradas budistas, isto séculos antes do próprio budismo se ter tornado na religião oficial do país. Mas nisto de acomodar os factos, o povo sabe bem como fazer.

E agora aqui estou, percorridos - metade a pé, metade nas traseiras de um pequeno tractor - os doze quilómetros que separam a cidade de Tsetang da pequena aldeia do vale de Yarlung, que o forte vigia de pedra e mantras. E fi-lo porque o meu principal objectivo era essa torre. Perseguia-me aquele seu aspecto de castelo medieval desenhado contra o azul intenso do céu, com as nuvens sempre a tecer-lhe partidas. Fosse como fosse, também não tinha outra alternativa - caminhar ou pedir boleia - já que o transporte público não existe, pura e simplesmente. Os autocarros de Tsetang, a terceira mais significativa povoação do Tibete, cidade descaracterizada, tem o seu terminus junto à base militar, a meio caminho entre Tsetang e Tranduk, aldeola conhecida pelo seu mosteiro, ainda com traços visíveis da destruição perpetrada durante a revolução cultural. Dir-se-ia um serviço exclusivo para militares e suas famílias. E um serviço não tão pouco regular quanto isso. Os autocarros chegam junto aos portões da base militar - com um 'I NO ADMITTANCE' bem explícito apesar dos erros no inglês - cada quinze minutos. E os militares (pelo menos os quadros superiores), têm ainda à sua disposição diversos outros veículos. Quanto aos habitantes das povoações no vale mais adiante, que se amanhem na caixa dos camiões e 'tuk-tuks' ou no selim das respectivas bicicletas ou então a penantes, pela beirinha das estradas ladeadas por árvores que a separam dos campos de cevada a aloirar pelo Verão adiante.

E agora aqui estou ao princípio da tarde. Após ter namorado de todos os qu adrantes o gracioso forte transformado em eremitério, decido subir ao topo na pior altura. Precisamente quando o sol está a pino, e os jipes e autocarros repletos de turistas anunciam a sua chegada com nuvens de poeira, no vale em baixo.

O filme que se segue, não passa de um plano fixo com a patética imagem de europeus com peso a mais, debaixo de bonés de beisebol, a arrastarem-se pelo caminho íngreme acima, com miúdos da aldeia vizinha no encalce a mendigar ou a levá-los pela mão a troco de umas sobrazitas de dinheiro.

E agora aqui estou - depois de ter trovejado, raios terem riscado o céu de alto abaixo, e os últimos camiões terem rumado a Tsona, junto à fronteira com o Butão - neste cubículo do eremitério na companhia de Pushun, o pequeno monge que decidiu tomar-me sob o seu encargo. Terminadas as suas funções de limpeza no mosteiro, Pushun e o seu amigo Tashi fazem tudo para que me sinta em casa, enquanto os restantes colegas de reclusão, na companhia do lama superior, cumprem as orações vespertinas.

O espaço onde estamos é exíguo. Mal cabem os catres que servem de leito aos dois jovens monges. Na vidraça estão coladas três fotos Poloroid e, envolta num quadro representando Buda sentado sob a frondosa copa de uma árvore em Bodhagaya, está um kata - lenço devocional de seda. Como é tradição, Pushan prepara-me a malga de tsampa (cevada torrada) bem regada com chá com manteiga.

A chuva bate de mansinho nas vidraças e embrenha-se com os mantras recitados na sala contígua. Não satisfeito com a tsampa presenteada, Tashi ausenta-se por vários minutos, regressando pouco depois com quatro sacos de massa instantânea, obtida na loja da aldeia. Loja, loja não será propriamente, mas mais uma casa particular, onde através da minúscula janela se pode adquirir massa, biscoitos, cigarros, refrigerantes e pouco mais. Os pauzinhos, Pushun vai buscá-los dentro de uma lata vazia de cerveja, onde repousam habitualmente .

Cai a noite. No quarto, Pushun, acende a 'chuma' (pequena lamparina) e verte mais chá com manteiga na minha tijela colocada em cima da 'tchoke' - mesa profusamente decorada com pinturas tibetanas. Tashi, por seu lado, não larga o minúsculo rádio walkman de ondas curtas. Coloca-o fora da vidraça, para melhor sintonizar. Passa-me depois os auscultadores para que identifique a emissora. 'Hindi? Nepali?' 'Bu zhi dao'. Muitas delas transmitem em dialectos irreconhecíveis. Lá das bandas dos Himalaias, sem dúvida. 'Butão?' Talvez. A dada altura Tashi passa-me os auscultadores e exclama: 'Dalai Lama!'. Ouço, e não reconheço a língua que fala. Não creio que se trate do carismático líder tibetano, mas anuo com a cabeça afirmativamente.

Folheio depois, por curiosidade, um calhamaço de folhas rectangulares compilados entre duas tábuas - a 'pecha' - escurecidas pelo fumo e pelo tempo, e que contêm os mantras aprendidos e repetidos pelos monges desde que as suas famílias os predestinam à vida monástica. Pequenas marcas vermelhas indicam o espaço destinados às respirações durante a leitura automática dos mantras. Enquanto isso, os pequenos monges distraem-se com as imagens e fotos do meu guia de viagem. 'Dorge ! ', 'Chenrensig', 'Jampel', exclamam eles apontando para as imagens da mitologia budista importada da Índia. En hindi chamam-se 'Vajrapani', 'Avalokiteshvara' e 'Manjushri', respectivamente. (Admitamos que os tibetanos escolheram nomes bem mais fáceis).

O único ruído perceptível continua a ser o da chuva que bate nas vidraças. Pushun, incansável, prepara-me a cama à entrada da assembleia principal do mosteiro e, antes de se ir deitar, oferece-me um saco com queijo de iaque misturado com açúcar amarelo. 'É para a viagem', parece dizer-me aquele sorriso encantador. Entrega-me depois a lamparina, que fica acesa até extinguir-se por si própria, e entra na sua sela.

Deitado à entrada da capela consagrada aos antigos reis do Tibete do vale de Yarlung, assim adormeço. Na paz de Yumbulagang.


  
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Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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