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PENSAR?! Isso não será demasiado?

Não sei até que ponto um Erasmo, um Hume, um Newton, um Comte, um Pascal, um Descartes, um Rousseau, um Marx necessitariam das redes da Internet para pensar. Como se o pensamento tivesse a ver com uma configuração técnica, mais do que com uma configuração da praxis do saber teórico e do pensar crítico.

O pensar crítico é uma operação teórica e tem cada vez mais a ver com o valor de uso dado à educação. Esse valor de uso determina fatalmente o modo como encaramos a educação. Os objectivos que lhe vão sendo traçados dependem das necessidades sociais, do mercado de trabalho e do modo como se vai organizando o mundo e a vida quotidiana das pessoas.

Vajamos um exemplo. Se virmos o modo como estão organizadas as cozinhas modernas concluiremos que estão equipadas para serem usadas por pessoas que não sabem cozinhar. Encontramos ali uma série de apetrechos de plástico e de vidrocerâmica que não precisam de ir ao fogo. Temos forno micro-ondas para o aquecimento. Arcas para congelação e ultracongelação. Quinquilharia automática da qual se destaca a faca-eléctrica e o abre-latas automático. Nesta cozinha pode não haver sequer fogo, porque o fogo só é preciso para os que sabem cozinhar e, de facto, esta cozinha foi pensada para os que não sabem nem querem cozinhar.

O supermercado tende cada vez mais a oferecer-nos os pré-cozinhados e os produtos já cozinhados. Portanto, por trás dessa cozinha pensada para quem não sabe cozinhar, actua um mecanismo que permite que alguém que não saiba cozinhar e nem queira pensar, vá ao supermercado e resolva a sua vida comprando os "já cozinhados" e "pré-cozinhados".

Os supermercados organizam-se cada vez mais a pensar em quem não sabe cozinhar e estimulam as pessoas que ainda o sabem a desaprender. É que o supermercado permite a quem não sabe cozinhar abastecer-se do necessário para ser usado na cozinha pensada para quem nada sabe. Sopas pré-confeccionadas, pratos pré-confeccionados, segundos pratos pre-confeccionados e sobremesas confeccionadas está tudo à vista e devidamente ordenado e sugerido.

Portanto o saber cozinhar converteu-se num absurdo, porque o mundo se está a organizar para os que querem dispor de todo o tempo para uma ocupação passiva. Por exemplo, podem querer os pré-cozinhados e os cozinhados para disporem de todo o tempo para ver a telenovela, a partida de futebol, o concurso x, o filme y, a série w.

Estamos então perante uma sociedade configurada, cada vez mais, como sociedade do conformismo, do consumismo e na e para a qual se torna supérfluo o pensar.

O pensamento sistémico, quer dizer, o económico, faz parte das múltiplas e infinitas linguagens que hoje estão a perder sentido, do ponto de vista do sistema.

Propor o pensamento único, a passividade, contra o pensamento sistémico dá jeito a quem pretende ter o domínio global do mundo. Interessa a quem nos quer dominar e impor as suas ideias e produtos. Interessa a quem quer que não saibamos procurar as causas dos problemas e só nos sejam visíveis os efeitos.

Esta visão única - que se serve do não pensar das massas - diz-nos que a pobreza é o efeito de não se ter educação. Assim o pobre é tido como responsável pela sua própria pobreza. Aponta-se-lhe o dedo e diz-se: não tem educação, não sabe inglês, francês, alemão, italiano, norueguês, sueco, russo e japonês, é incapaz de navegar na Internet. Portanto é pobre porque não foi competitivo. É pobre porque não se soube adaptar às novas regras que comandam o mundo. É pobre porque quer, merece ser excluído.

A pobreza já não é percebida como o resultado da concentração da riqueza nas mãos de uns poucos, nem da aplicação das politicas de convergência, nem do domínio da economia mundial por meia dúzia de conglomerados industriais e comerciais, nem da exploração económica e social, porque no fundo - nesta sociedade feita para não pensar - dizem-nos que a pobreza é uma questão individual. Cada um é pobre porque quer. Se alguém é pobre é porque não soube reciclar-se na dinâmica do mercado, não está na globalização. Portanto não nos devemos incomodar com a pobreza, com o desemprego, a exclusão social. A culpa é individual, não é do sistema. Podemos ficar - individualmente - de consciência tranquila frente ao televisor a consumir os enlatados televisivos, os programas sobre as figuras públicas cá da paróquia ou os outros que exploram o sentimentalismo do Zé Povinho ou ainda os debates onde nenhuma frase chega ao fim, todos eles também produzidos para nos ensinar e treinar a não pensar.

O sistema vai bem e recomenda-se. Investe e desinveste em função do caudal do lucro. Actua ou deixa de actuar em função do lucro imediato. Segue cegamente a lei do lucro máximo sem se condoer com coisas menores como a fome, a miséria, o desemprego ou a exclusão social. Para que as massas que não pensam continuem a não pensar e permaneçam tranquilas, obedientes, consumidoras, tem o sistema à escala global, meia dúzia de iluminados que tudo explicam da forma mais conveniente. Em cada país existem réplicas destes iluminados de fama mundial que assumindo a condição de gente de opinião traduzem o discurso único global para os indígenas de cada nação.

Hoje fala-se cada vez mais de globalização e a ideia não parte propriamente do sítio onde vivemos mas vai tomando forma e vai-se fazendo sentir.

Cada vez mais os comentadores -nos jornais, na televisão e na rádio - opinam e formam a nossa opinião pública comentando os temas em moda nos centros mundiais de poder. Citam invariavelmente uma mão cheia de americanos, um ou outro inglês, este ou aquele alemão, dois ou três franceses. Até parece que nos países não dominantes não se produz opinião nem pensamento. E parece ainda que na África, Na América Latina ou na Ásia não há um único especialista, um só pensador.

Aceitar este seguidismo consumista, fazer disto escola, fazer disto moda, é aceitar a globalização pelo seu lado negro, porque produtora de um pensamento económico, cultural e político único e totalitário.

Muitos dos relatórios internacionais que alimentam os nossos comentadores e opinadores, são relatórios, quase sempre, também eles, produzidos nos mesmos centros mundiais de poder - O Fundo Monetário Internacional (FMI) o Banco Mundial - com base na opinião de meia dúzia de "especialistas" ou homens de opinião, politicamente escolhidos, regiamente pagos e dispostos a servir os interesses da meia dúzia de polícias e poderosos do mundo.

Se estivermos atentos ao que se escreve e se diz e ao modo como se escreve e diz, não é difícil verificar que boa parte dos nossos jornalistas, dos nossos homens públicos, dos nossos políticos, dos nossos fazedores de opinião, vão indo felizes porque se sentem na moda. Estar na moda é evitar pensar, é não ter o trabalho de se preparar para tentar entender a realidade que nos cerca, é, pelo contrário, papaguear o que os poucos que dominam o mundo vão querendo que se papagueie por todo o planeta.

De resto se quatro marcas de massa de tomate servem todo o mundo e uma coca-cola é boa para toda a gente do planeta, porque é que no mundo das ideias havia de ser diferente? Três ou quatro ideias e uma máxima não chegam para alimentar o pensamento mundial? Não é suficiente que as três ou quatro ideias e a máxima sejam rasteiras, simples, inócuas, capazes de serem consumidas por gente de todas as cores e culturas?

O pensamento vai indo como os produtos, cada vez mais controlado, mais globalizado, mais sem sabor, mais publicitado, para servir a um número cada vez maior de consumidores à escala mundial.

No fundo vai-se preparando o terreno para construir o mercado das ideias, em que o conteúdo não muda, mudando só a embalagem. Produtos para cozinhas onde ninguém sabe, ou vai, cozinhar. Informação para quem não aprendeu ou desaprendeu de pensar.

Se não ajudamos a mudar o actual rumo das coisas é muito provável que com o tempo nem seja preciso saber ler e escrever. Talvez a leitura e a escrita sejam substituídos pelos símbolos e pelos signos. Em vez da palavra aeroporto poem-nos o desenho do avião, em vez de proibido fumar mostram-nos um cigarro com sinal de proibido e por aí adiante. Já não será necessário saber ler. Comportamo-nos em função de regras mundialmente estabelecidas será a nova teoria da acção comunicativa.

O que temos de saber daqui em diante é o que nos sugerem para consumir sem cuidar sequer do conteúdo do que nos pedem. Por exemplo, em educação, no primeiro dia de aulas o professor diz: na minha disciplina vamos fazer trabalhos. Os alunos pensam: "ah muito bem! Este dá as notas pelos trabalhos". Mas quando entregam os trabalhos, se o professor lhes diz que os trabalhos devem reunir certos requisitos, mostrar conhecimentos, é natural que o aluno formado nesta mentalidade consumista de não pensar possa protestar: "ah, o professor não nos disse que o trabalho tinha que ser original, nem que tinha de mostrar conhecimentos; pediu um trabalho, eu entreguei-lhe um trabalho, o senhor tem a obrigação de me aprovar." E como a preguiça de pensar se vai instalando em professores e estudantes é natural que o professor concorde e deixe andar. Afinal o aluno sempre teve o trabalho de lhe entregar um trabalho. Se não tem conteúdo que havemos de fazer? Esforçou-se a juntar umas folhas, já não é mau de todo.

Lamentavelmente o que a actual situação gera são formas de corrupção entre as pessoas e também entre educadores e estudantes. Dizendo melhor, entre os que não querem ter o trabalho de ensinar, mas que ao mesmo tempo querem tirar benefícios do ensino, e por outro lado os estudantes que não querem aprender, mas a quem sabe bem obter um certificado de aproveitamento.

Quem é realmente culpado? Suponho que as tendências do tempo, as que parece necessário alterar.

Antes, os animais eram uma companhia para os homens, hoje o homem é uma companhia para os computadores. Porque, mesmo entre os intelectuais - os que, mais do que intelectuais, devíamos chamar executivos do pensamento - não há quem ande sem a sua internet, o seu modem, o seu telemóvel.

Não importa se não sabem nada. Estão unidos a todo o mundo e em todas as redes de comunicação e em tempo real. Podem socorrer-se em cada momento do pensamento único produzido lá nos centros de poder. Podem ir lá buscar a ideia salvadora. Podem estar na moda. Podem fazer a última citação. Podem dizer a frase do momento. Basta saber traduzir.

A sociedade continua a organizar-se para nos dispensar de pensar. De facto pensar já não faz falta, não é útil e temos quem pense por nós.

É que se pensamos temos de olhar e questionar a realidade. Se questionamos a realidade temos de usar o juízo critico. Se usamos o juízo critico podemos descobrir razões para nos interrogar, para querer mudar, para ficar inquietos, para projectar ou para construir ou para agir.

Olhe leitor, permita a pergunta: nos tempos que correm, pensar não será um esforço demasiado e inútil?

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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